quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

As Pernas da Vânia

"O ser humano é capaz das coisas mais abomináveis", refletia o sr. Almeida, ao ver na TV a notícia sobre o casal morto e incendiado por bandidos."Esse mundo está perdido", era também uma frase que usava com frequência.O sr. Almeida estava chegando na casa dos sessenta anos, viúvo, morando sozinho, prestes a encerrar suas obrigações profissionais com o 13º Cartório de Notas, que havia lhe consumido trinta e cinco anos do seu vigor físico e intelectual.Enfim, ele estava às portas da tão esperada aposentadoria.
Sem filhos, vivia uma rotina pacata e reclusa, resignado ao peso da idade e à curta perspectiva dos dias que lhe restavam.Alto, um metro e oitenta, parcos cabelos nas laterais da cabeça, um bigode não muito dramático mas que não passava despercebido.
O sr. Almeida admirava os grandes autores da literatura brasileira.Admirava-os mais do que os lia.Na verdade não os lia nunca.Guardava uma remota lembrança de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "O Guarani", "Os Sertões", "Crime do Padre Amaro" (e incluía o título do português Eça de Queiroz, que para ele era brasileiro).Não entendera muito o "Brás Cubas" e a ironia machadiana.Já "O Guarani" fora aceito com certa facilidade pois naqueles tempos de adolescência ele nutria uma paixão platônica por uma colega de classe cujas características batiam com as da heroína Cecília.Quanto aos "Sertões", fora intragável.Vencera "A Terra" a muito custo mas largou a leitura no meio do "Homem".E ele lá queria saber de nordestinos? Livro chato.Já sobre o "Padre Amaro" não recordava-se direito da história.Precisava relê-lo.Talvez no próximo ano quando já estivesse no pleno da aposentadoria.
O sr. Almeida sempre teve dificuldades no que dizia respeito ao jogo amoroso.Adolescente, sofria de uma timidez que o impedia de expressar seus sentimentos pelas garotas da escola, e mais tarde o mesmo ocorreu com as que encontrou pela vida.Achava bem mais fácil abordar prostitutas, pois com elas não havia necessidade de jogar um charme que não possuía, nem tentar ganhar afeições com flores, poemas ou convites pra passeios de carro.Tudo isso era dispensável, bastava o pagamento.
Antes de se casar, já quase aos trinta anos, nunca havia tido uma namorada, apenas encontros pagos, o que afinal, não haviam sido assim tão ruins.O sr. Almeida era um homem essencialmente prático, pragmático, e a falar a verdade, nem dava tanta importância assim ao sexo.Sempre fora fiel a sua esposa, d. Belinha, oito anos mais jovem, de família católica fervorosa, e o respeito e o pudor entre os dois era tanto que enquanto viveram em comum nunca mostraram-se nus um ao outro, a não ser na escuridão total.Ela morrera de um câncer no seio.
Àquela altura da vida, o sr. Almeida não mais cogitava sentir algum tipo de desejo por mulher alguma, pelo menos não até a chegada de uma nova funcionária no cartório, a srta. Vânia.

Morena, um metro e setenta, cabelos não muito longos, mas negros, muito negros, e um olhar que sorria tanto quanto o próprio sorriso.A srta. Vânia Mara era muito bonita e atraente, tinha um corpo exuberante, mantido em forma à base de muito exercício e alimentação saudável.Esse estilo de vida havia apenas realçado seus encantos físicos naturais.A srta. Vânia tinha uns seios que eram tudo menos discretos.No ambiente de trabalho as opiniões dividiam-se entre os que achavam serem eles naturais e os que apostavam terem sido realçados pelo silicone.E outros ainda pilheriavam:"Só tocando pra saber..."
Além dos seios, ela tinha também uma esplendorosa bunda.Era uma daquelas mulheres indefectívelmente descritas como "gostosas".E como toda gostosa, a srta. Vânia tinha plena consciência da própria gostosura.Quando alguém assobiava à sua anatomia, ela agia como se aquilo não lhe dissesse respeito.E o sujeito comentava com quem estivesse ao lado:" Tá vendo, ela gosta!..."
Alguém poderia achar que a beleza da srta. Vânia causasse inveja e maledicências por parte de suas colegas de trabalho, ledo engano, pois todas se davam muito bem com ela que com sua simpatia conquistara a amizade e a admiração de todas.Juntas fofocavam, trocavam dicas de beleza, folheavam revistas de moda, e claro, falavam mal de seus colegas, ridicularizando uns pela barriga, outros pela falta de higiene, sendo que o único que tinham em alta conta era o sr. Almeida.Pois, sério e respeitador, jamais se engraçara com a srta. Vânia ou com outra das meninas.

Mas é claro que o sr. Almeida havia prestado atenção às formas da srta. Vânia, afinal, tudo que afetava aos demais funcionários afetava também a ele.A presença esfuziante dela, os cabelos, os seios, a bunda, enfim, ela toda significava para ele o mesmo que para todos os outros.Apenas que em decorrência de sua educação e deferência, ele seria incapaz de qualquer gracejo à jovem.
Particularmente perturbado ele achava-se quando a srta. Vânia resolvia ir trabalhar de minissaia.O sr. Almeida lutava renhidamente consigo mesmo para manter a atenção aos seus afazeres sobre a mesa, frente à atração que aquelas pernas exerciam sobre sua concentração até então inabalável.Eram pernas pecaminosas, luxuriantes, pernas como não se encontram por aí, nas ruas, a qualquer hora.O sr. Almeida achava até um contrasenso aquelas coisas dentro de uma repartição pública.Aquele não era o local apropriado.

Então ocorreu algo que pareceu tão surreal ao sr. Almeida, que ele chegou a achar que estivesse sonhando acordado.A srta. Vânia, mais uma vez de minissaia,voltando do almoço, dirigiu-se diretamente à mesa dele e chamou-lhe a atenção dizendo ter sido picada por um inseto que não havia identificado muito bem, e que o tal monstro picara-lhe numa das coxas, mais especificamente a da direita, e que a tal picada havia provocado um pequeno inchaço e uma vermelhidão no local, o que a deixara muito apreensiva.Dizia até que sentia um certo ardor na região ofendida.
O sr. Almeida ouviu com muita atenção as queixas da moça, um pouco admirado por sua ênfase, e mais admirado ainda depois que ela elevou a coxa picada até a altura do seu rosto e pediu-lhe que verificasse se não havia no local o tal inchaço que ela dizia estar envolto por uma mancha rubra.O sr. Almeida logo que teve aquele pedaço do paraíso ao alcance dos seus sentidos tácteis foi tomado por uma onda de calor que invadiu o seu rosto, fazendo também com que suas orelhas fervessem  e toda a sua cabeça se parecesse com uma chaleira em ebulição.De repente ele percebeu que sustivera a respiração enquanto ouvia os incentivos dela para que tocasse na perna e comprovasse o que ela relatara em cores tão vivas.
Então ele, com a mão meio entorpecida e como que levada por alguma outra mão invisível, encostou o dedo indicador na parte indicada pela jovem, e num misto de entusiasmo e receio de cometer alguma indiscrição, sem saber se aquilo tudo não se tratava de alguma brincadeira dos colegas de trabalho, ou da própria srta. Vânia, o sr. Almeida não sabia se rejubilava-se ou se ficava em alerta esperando pelo pior.
No fim das contas, sua única reação à pergunta dela sobre se confirmava as suspeitas da picada foi um balbucio frouxo, quase um grunhido, dizendo que sim, ali havia mesmo um pequeno inchaço, quando na verdade ele nada sentira, e também nem sequer aproveitara a chance de tocar  naquele corpo diariamente tão desejado.

Depois desse dia, o sr. Almeida viu-se vítima de uma dúvida constante - quais seriam as reais intenções da sua colega? Seduzí-lo? Fazê-lo de bobo? Teria sido apenas um alvo de algum tipo de aposta? Ou talvez não houvesse outro propósito além daquele expressado pela jovem em sua agonia?.Devia ele ter se aproveitado da situação? Talvez tenha perdido a chance de sua vida.Sim, pois, quando antes tivera ao seu alcance a oferta de um corpo esplendoroso daqueles? Talvez tenha sido apenas ingênuo.
"Ah, Vânia...tão gostosa...", pensou - apesar de nunca haver pronunciado tal libidinoso adjetivo em público.Mas até mesmo o sr. Almeida permitia-se às vezes um certo grau de vulgaridade.E se por acaso surgisse outra chance igual àquela, não a deixaria passar em brancas nuvens.Ah, mas não mesmo!